Entro neste texto como quem adentra um tribunal silencioso, carrego a toga invisível dos que perderam o sono diante de uma sentença que algema o riso. Não falo de absolver grosserias nem de dourar a pilhéria que fere: falo de algo maior, mais delicado, mais essencial — o frágil oxigênio da conversa pública que atende pelo nome de liberdade de expressão.
Na engrenagem racional do Direito, uma piada é um ato de fala, imperfeito, arriscado, sujeito ao repúdio social, ao contraditório, ao descrédito. Mas cadeia? Cadeia é para quem violenta corpos, para quem avilta bens, para quem trucida a paz. Quando o açoite penal se ergue contra o humor, alguma coordenada se extraviou no mapa moral do Estado.
Pensemos: a irritação que a chalaça causa, por pior que seja, não tem asa nem prego; aquilo que realmente magoa está no plano das ideias. E ideias se combatem com ideias — jamais com as barras trancadas de um regime fechado que, de tão severo, acaba soando desproporcional à própria injustiça do gracejo.
Vídeo removido, show cancelado, reputação arruinada: eis sanções reais e eficazes. Isso se chama responsabilização — dura, áspera, mas ainda dentro do leito democrático. Transformar o humorista em criminoso, contudo, é costurar a manta judicial com fios de pânico e autoritarismo; é confundir o remédio com o veneno, a cura com a amputação.
Quem aplaude prisões pedagógicas esquece que, amanhã, outro riso — ou talvez um poema, um editorial, uma aula, uma oração — pode atravessar o mesmo corredor polonês. Hoje a cela repugna o gracejo que não nos faz rir; amanhã aprisionará a dúvida que transforma, ou a crítica que empurra a sociedade para frente. É questão de tempo e de turno.
Dizem: “Mas a honra das minorias exige resposta firme.” Sim, exige. O que se faz, então? Exposição pública do erro, reparação civil (quando seja o caso), direito de resposta, boicote legítimo – tudo isso compõe um arsenal democrático que não destila medo, mas responsabilidade. A repressão penal extrema, ao contrário, devolve-nos a um tempo em que a fogueira sangrava versos e gargalhadas em igual medida.
O direito penal é bisturi, não martelo. Quem brandir o martelo contra a piada abre rachaduras na estrutura que sustenta o debate plural — e o barulho que ecoa dessas fissuras lembra mais ruído de correntes do que a música da liberdade.
Lembro, por dever de ofício, que a jurisprudência constitucional autorizou a responsabilização ulterior, jamais a censura prévia; e que a lei, mesmo quando endurece contra o discurso de ódio, exige proporcionalidade na pena. Se esquecermos esses limites, abriremos a jaula do punitivismo cultural — e lá dentro, logo veremos enfileiradas não só as piadas torpes, mas qualquer palavra que espete a sensibilidade dominante do dia.
Por isso ergo esta crônica como quem ergue um sinal de trânsito no meio de uma estrada nebulosa: não ultrapassem a linha vermelha que separa o constrangimento social do constrangimento penal. A primeira é corretiva; o segundo é corrosivo.
Se é verdade que o humor pode ser ácido, lembremos que o Estado, quando exagera, é ácido sulfúrico: corrói a pele do dissenso, carboniza o espírito crítico e deixa a sociedade com o riso atrofiado, de olhos fundos e lábios cerrados.
A gargalhada só é livre quando corre risco de fracassar, mas sabe que não será condenada ao degredo criminal por tentar. Se permitirmos que o riso vire réu, talvez, ao final, rejeitemos o palco, desliguemos os microfones, fechemos os clubes, e entreguemos ao silêncio a tarefa de contar piadas — silêncio este que, como se sabe, jamais ri; apenas cala.